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  • Writer's pictureMatheus Montanari

A criação artística no coletivo: atos poéticos conscientes e inconscientes


Antes de começar o texto, trago uma citação de Sol LeWitt em Parágrafos sobre Arte Conteitual, para aqueles que acham que o artista não pode falar sobre sua própria obra:


"O Editor me escreveu que é a favor de evitar 'a noção de que o artista é uma espécie de macaco que tem que ser explicado pelo crítico civilizado.' Isso devia ser uma boa notícia tanto para os artistas quanto para os macacos." Sol LeWitt, Parágrafos sobre Arte Conceitual.

Durante três meses participei de um grupo chamado "Criações Poéticas". O grupo que reunia cerca de 20 artistas, discutia semanalmente tópicos importantes da arte contemporânea com palestras de tema específico e ao fim dos encontros se planejava organizar uma exposição coletiva das obras criadas. Conforme o tempo foi passando, surgiu uma questão preocupante em termos de curadoria: como uma exposição comportaria tantas obras de diferentes expressões sem nenhum tema que as ligasse?


Foi, no entanto, nesse ponto que começamos a notar um fato curioso, conforme conversávamos entre nós, percebíamos que as obras pareciam todas estar conectadas, mesmo que estivéssemos trabalhando sozinhos em casa. É claro que estávamos ligados e imersos em temas comuns devido as discussões que aconteciam nos encontros, mas a conexão entre as criações transpassava isso, e me fez perceber como o grupo (des)organizava uma poética coletiva de criação.




Encontrar semelhanças em criações não diretamente ligadas não é exatamente uma novidade, muito se especulou ao longo dos anos a respeito das criações de pirâmides semelhantes em diferentes continentes, ou de mitos surpreendentemente parecidos de diferentes sociedades. Em 1934, Carl Jung, psicanalista Suíço, lança um dos seus principais trabalhos "Os arquétipos e o inconsciente coletivo". Para #Jung, tais semelhanças sugeriam uma psique humana coletiva, ou seja, uma memória coletiva que toda humanidade poderia acessar. Essa memória ultrapassa o inconsciente individual e acessa o inconsciente coletivo através de símbolos e arquétipos que representam padrões que somos capazes de reconhecer instantaneamente e atribuir significações emocionais. Por exemplo, o arquétipo da Grande Mãe, que se apresenta em mitos por deusas em seus caldeirões, ou histórias de natal como uma avó afetuosa cozinhando um ensopado: imediatamente elas nos remetem a uma sensação de confiança e cuidado.


Dentro desse contexto de memória coletiva, apresento uma reflexão na minha obra "O corpo Memórico" que apesar de não fazer parte dessa mesma mostra, traz muito bem os conceitos apresentados a cima.


A instalação interativa apresenta um conjunto de objetos e de narrações em áudio sobre memórias coletadas ao longo de um ano de pesquisa (para saber mais sobre a obra, visite a página dela aqui). Apesar da especificidade das memórias em relação aos objetos, elas acabam atuando como arquétipos, como as memórias associadas a uma boneca presente na instalação, mesmo se tratando de uma situação específica, o arquétipo da boneca é acionado quando o visitante a vê, e logo associações com sua própria infância e as histórias que viveu com seus brinquedos podem emergir.


Além disso, o corpo do visitante interage com a instalação através de um sensor de frequência cardíaca que altera a iluminação da sala e a reprodução do áudio das narrativas. Dessa forma, a resposta inconsciente do corpo do visitante interage diretamente com as memórias expostas, sendo, de certo modo, uma visualização do processo de acesso às memórias coletivas da obra, e consequentemente do inconsciente coletivo.


Voltando ao contexto do grupo de Criações Poéticas, lá pode-se ver outras formas, mais abstratas, de arquétipos se manifestando nas obras. Muito se manifestou em vermelho, e logo virou um consenso que a cor permearia não só o espaço, mas também as obras. Também, viu-se muitas coisas em processo, em mutação, transformação: algumas obras que se faziam ao longo da exposição, ou que surgiam da criação de outros trabalhos, performances, e tudo se desenrolava em conjunto, mas permanecia conectado por linhas - vermelhas.


E foi assim que uma obra deu origem a si mesma e também deu origem as outras, que por sua vez a alimentaram. A "obra" está sempre nos domínios do Outro, para parafrasear Lacan, que vem muito a calhar neste momento. Apesar de ser psicanalista, seus textos integram corpo importante para a filosofia, arte, literatura e afins. Num resumo simplista de algumas de suas ideias que devem caber nos próximos parágrafos, vou me atrever a fazer um paralelo entre o inconsciente como o discurso do Outro, e como aconteceu o processo de criação poética do grupo.


Em #Lacan, o Outro é visto como o que fica além de nós mesmos, mas que é responsável pela forma com que nos moldamos e redefinimos (nós mesmos), tudo isso por intermédio da linguagem - que faz parte do Outro, também. Portanto, como utilizamos a linguagem para apresentar e para organizar nossos pensamentos, moldamo-nos de forma que o inconsciente se torna o discurso do Outro. Para mim, isso fica evidente na arte, a medida que a obra utiliza uma linguagem, ou melhor, se apropria, e apropriação pressupõe a tomada de algo que originalmente não é seu, para gerar um diálogo entre ela (a obra) e o expectador. E nesse momento, o discurso do artista não faz sentido em sua subjetividade individual, a menos que ela seja codificada e exposta com sua chave, num processo meramente ilustrativo ou de entretenimento.


Com o intuito de apresentar o discurso de Outro, vou utilizar uma obra que criei especificamente para essa exposição nomeada depois de seu grupo: "Criações poéticas". Ela fica em exposição na Galeria Municipal Gerd Bornheim e na Galeria do Centro de Cultura Ordovás, simultaneamente em Caxias do Sul - RS até o dia 27 de Janeiro de 2019.


Pensando na importância do Outro (nesse caso o grupo e mais tarde o visitante) na construção da obra, comecei a elaborar conceitualmente o trabalho intitulado "Exílio - o limbo de dois lugares conectados". Além de querer trabalhar o Outro como pessoa em constante interação modificando a obra, também queria adicionar o Outro em sentindo de lugar, afinal a exposição acontece em duas galerias diferentes ao mesmo tempo. Para efetuar essa conexão e constante transformação compreendida entre obra-interator-local propus a seguinte instalação:



Em cada galeria coloquei um conjunto de um celular e uma caixa de som. Em cada caixa de som é reproduzido uma parte de um diálogo, os celulares estão sempre em uma chamada de viva-voz de forma com que é possível escutar o diálogo completo das duas gravações em um local.


O diálogo gravado, no entanto, nunca aconteceu entre as duas pessoas pois ele foi gravado separadamente. Trata-se, na verdade, de dois monólogos bem temporizados e poeticamente compostos, que apesar de existirem sozinhos, formam uma conversa entre os lugares, pois o diálogo não está completamente em um local, nem em outro.


O visitante, incitado pela gravação que repete diversas vezes "alô", torna-se interator na hora que responde um dos diálogos e passa a ter uma conversa com a gravação ou com um interator que esteja na outra galeria, moldando assim o seu discurso de acordo com o Outro que por vezes é a obra de arte, e por outras é a resposta de um terceiro à mesma obra.


Em vista do que vimos até agora, chegamos a um ponto central que não centraliza nada, na verdade ramifica e multiplica. Para tal, convoco outros dois filósofos #Deleuze e #Guattari . Em Mil Platôs, os autores apresentam um conceito que foi para mim a base do trabalho do grupo Criações Poéticas: o rizoma. Talvez o termo seja familiar da botânica, em que significa uma espécie de caule de crescimento horizontal, filosoficamente falando, é mais ou menos a mesma coisa:


"Uma agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões. Não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente linhas” Deleuze e Guattari, Mil Platôs, Vol I.

E como Deleuze e Guattari são daquele tipo de autores que não se lê somente eles, mas também outros autores que escreveram sobre eles, apresento o ponto de vista de David #Lapoujade, que foi próximo de Deleuze, e me foi apresentado por um presente de alguém também muito próximo e querido. Ele diz que Mil platôs poderia se chamar "Lógica das multiplicidades", o que eu concordo, e ele coloca:


"E quando Deleuze e Guattari dizem que a filosofia consiste na criação de conceitos, o que é que dizem senão que se trata de produzir lógicas - tanto que um conceito nunca se cria sozinho, mas sempre encadeado a outros? Criar um conceito é criar lógica que o vincula a outros conceitos." Lapoujade, Deleuze, os movimentos aberrantes.

Nesse sentido também funcionam as obras de arte, seja num movimento consciente como as escolas de artes vanguardistas, dentro de seus manifestos e expressões estéticas, ou de forma inconsciente e coletiva por classificações temporais, espaciais, políticas, etc. Uma obra nunca está sozinha, ela está sempre associada a um conjunto de obras, conceitos, fatos, sensações, emoções, interpretações...


No grupo "Criações Poéticas" vi essa multiplicidade muito claramente, e por isso em conjunto com o artista Nilton Dondé, criamos a obra "Rizoma Processual".




A instalação é formada com palavras que sumarizam arte para cada um dos participantes, bordadas em um único plano: o tecido. A partir dele, múltiplas linhas e conexões se espalham, ligadas uma as outras e a uma composição de imagens feita a partir da digitalização de parte dos corpos dos membros do grupo em sobreposição com frames selecionados de vídeos desses corpos trabalhando em suas obras de arte. Assim, a obra é formada do processo de criação das outras obras, e do corpo dos Outros artistas.

Junto à instalação, também há mais duas séries fotográficas dos artistas com seus corpos cada vez mais envoltos no processo de criação.



É por isso que concluo que criar é um ato contra a solidão, sempre que criamos algo estamos juntando fragmentos e os costurando através de diversas mãos, afinal todos os corpos são ligados por linhas vermelhas.


Um agradecimento especial a: Alessandra S. Oltramari, Carolina Keil, Carolina Santos, Darlan Gebin Scheid, Diego Pires de Lima, Fernanda Hammerschmitt, Gisele Sirena, Guilherme Barp, Isadora Gazzi, Junior Alceu Grandi, Lindonês Silveira, Luana Marasca, Lucas Leite, Marina Procházka, Marina Rombaldi, Nicole Martinato, Nil Kremer, Nilton Dondé, Sérgio Luiz Maciel Filho e Mona Carvalho.


Referências:


Escritos de Artistas anos 60/70. Glória Ferreira e Cecilia Cotrim.

Deleuze, Os movimentos Aberrantes. David Lapoujade.

Mil Platôs. Deleuze e Guattari.

Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Carl Jung.

The Language of the Self . Jacques Lacan.

The psychology book. Collin, Grand, Benson, Lazyan, Ginsburg, Weeks.




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